Que Shakespeare dá sempre um bom caldo é quase uma noção coletiva. Do Hamlet dos Clowns de Shakespeare aqui em Natal ao Muito Barulho Por Nada de Kenneth Branagh, não vi, até hoje, autor que tenha conseguido estragar texto do dramaturgo inglês. Os italianos Paolo e Vittorio Taviani, no entanto, propuseram algo que foi além da mera versão: transformaram em filme o processo de construção e ensaio de um Shakespeare encenado em uma prisão nos arredores de Roma, na Itália. Da experiência, surgiu César Deve Morrer.

O exercício é mérito do professor Fabio Cavalli, italiano que há anos se dedica a ensinar teatro a trambiqueiros, mafiosos e homicidas encarcerados em Rebbibia. Na empreitada que foi levada ao cinema, montou-se Júlio César, peça de Shakespeare escrita há mais de 400 anos, em que se desenlaçam as artimanhas e conspirações que redundaram no assassinato do rei que dá nome à peça.

Digo que os Taviani foram além porque é raro uma plateia ter a oportunidade de observar, mesmo que pelo filtro do olhar do cineasta, processos como de identificação e rejeição dos personagens no curso de uma montagem teatral. O impacto causado pelas ações de Brutus, Cássio e seus colegas nos detentos de Roma é desconcertante. Além disso, a sensação de claustrofobia causada pelos muros altos, grades e pesados portões de ferro contribui para que personagens e seu público voltem àquela Roma da peça, efeito que os Taviani acentuaram com a fotografia em preto e branco utilizada na maior parte das cenas. cena-do-filme-cesar-deve-morrer-dirigido-pelos-irmaos-paolo-e-vittorio-taviani-o-longa-mostra-um-grupo-de-prisioneiros-que-treinam-para-poder-encenar-publicamente-a-peca-julio-cesar-de-1361903513039_956x500

Mas o que de fato comove, neste trabalho genial – se partirmos do pressuposto de que a ideia é muito simples – é a observação de um mundo para o qual normalmente não queremos olhar, impregnado de um passado sujo e muitas vezes sem perdão. Ver aqueles presidiários tentarem, sem jeito, um papel na peça, e se dedicarem de forma obsessiva a personagens não tão distantes é um conforto, por dois motivos: vemos uma outra face de suas personas, aquela não exibida diante dos carcereiros e juízes; e temos a certeza, mais uma vez, de que o aprendizado por meio da arte é muitas vezes mais eficaz que anos de castigo ou sala de aula.

Fazendo filmes há quase 60 anos, Paolo e Vittorio Taviani fazem parte da mesma cepa do cinema italiano que produziu diretores como Bernardo Bertolucci, Ettore Scola e Marco Bellocchio. Geração que mesmo não tendo aderido ao rigor estético do neo realismo, produziu dramas existenciais e de crítica política. Assistir a César Deve Morrer e Indomável Sonhadora dentro de um período tão curto me fez pensar na experiência neo realista. Em tempos de realidades tão maquiadas e comercializadas, o cinema se volta, novamente, para a crueza da vida?